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Espera
na Eternidade
Fazendas Santas Marias existem às
dúzias, provavelmente às
centenas.
Em cada município podemos encontrar
pelo menos uma, grande ou pequena, bonita
ou feia, bem explorada ou até mesmo
abandonada.
Geralmente, talvez para diminuir um
pouco a confusão e para personalizar
sua propriedade, há quem as faça
Santa Maria de Alguma Coisa: Santa Maria
da Ponte Preta, Santa Maria da Mata
Adentro, Santa Maria do Rio Acima e
por aí vai. Em Minas Gerais,
perto de Poços de Caldas, há uma
Fazenda Santa Maria do Rego. Seu proprietário,
um estrangeiro apaixonado pela região,
demorou muito tempo para descobrir por
que diabos todos sorriam quando ele
dizia o nome de suas terras. Quando
ficou sabendo o significado jocoso-pejorativo
do termo "rego", achou que
era melhor mudar alguma coisa no nome
da propriedade. Depois de muito pensar,
chegou à conclusão que
o melhor era ela passar a se chamar
Fazenda Santa Maria do Rego Fundo...
Mas, a intenção não é fazer
um ensaio sobre nomes de fazendas...
A intenção é, tão
simplesmente, contar uma história
que, segundo as pessoas que a trasmitem
de boca a ouvido na região serrana
do Espírito Santo, é absolutamente
verídica, por mais fantástica
que possa parecer.
De natureza homem do campo e por profissão
preso a uma escrivaninha na cidade,
sua diversão nos fins-de-semana
era passear pelo interior visitando
e conhecendo fazendas.
Costumava dizer que não poderia
morrer sem ser um proprietário
rural e, se isso viesse a acontecer,
ele passaria o resto da eternidade assombrando
aqueles que, de uma maneira ou de outra,
tivessem contribuído para que
seu sonho não se realizasse.
Assim, ele e a mulher , aliás
companheira fiel de sonhos e passeios
agrários, conheciam como a palma
da mão quase toda a região
agrícola daquela parte do Estado.
Bem poucas estradas, boas ou ruins,
deixaram de ser trilhadas e esmiuçadas
em cada quilômetro, em busca de
uma fazendinha, de um simples sítio
que fosse, com que eles pudessem fazer
contas e sonhar.
Viram de tudo.
Desde belas fazendas e imponentes propriedades
com casas senhoriais do século
passado, até sitiocas pobres,
com ranchos de pau-a-pique ou casinhas
humildes de barro batido.
—
Precisamos encontrar uma área
boa, com uma casa bem antiga e em razoável
estado de conservação.
O problema é que precisa ser
bem barato... Na bacia das almas!
E toca a procurar, a tomar informações,
a sondar um, perguntar para outro...
Souberam, através de um amigo,
da Fazenda Santa Maria da Esperança.
Estava à venda e, como se tratava
de uma partilha de espólio ainda
em inventário, o preço
estava muito tentador, os herdeiros
precisando urgentemente de dinheiro
para poderem tocar o restante do processo.
—
Se você não comprar — disse-lhe
o amigo — outro vai lá e
arremata. E eu tenho certeza de que é justamente
o lugar com que vocês tanto sonharam
por todos estes anos.
Marcaram a viagem para o final de semana,
fizeram as contas, montaram uma proposta
de compra e sonharam, durante quatro
noites, com a tal fazenda.
Finalmente, o fim-de-semana chegou e,
bem cedo, eles partiram.
Com pouco mais de quatro horas, chegaram à cidadezinha
próxima à tal propriedade.
Ela logo se apaixonou:
—
É o tipo de cidadezinha que eu
adoro! Olhe só que calma! Que
paz! É um perfeito paraíso!
Passaram o dia por ali, almoçaram
numa espécie de restaurante e
pensão, ouviram a banda municipal
tocando no coreto da praça, namoraram
de mãos dadas sentados num banco,
no jardim em frente à igreja,
até Missa eles assistiram!
Esqueceram-se de que estavam no final
do Século XX, sentiram-se transportados
para várias décadas atrás,
para a época de 1930, quem sabe...
Dormiram na casa do médico da
cidade que, solícito, ofereceu-lhes
pousada explicando que, por pior que
ficassem instalados em sua casa, estariam
melhor do que na pensão, onde
provavelmente teriam que disputar lugar
na cama com percevejos e pulgas.
Logicamente, eles não acreditaram,
acharam que o doutor estava falando
aquelas coisas apenas por que queria
tê-los em sua residência...
No dia seguinte, ainda escuro, levantaram-se
cheios de ânimo para conhecer
a fazenda.
—
Até o nome é sugestivo — disse
o corretor encarregado de intermediar
a negociação — Fazenda
Santa Maria da Esperança... Não
se pode dizer que seja um nome feio!
Região cafeeira, dava gosto andar
por aquela estrada. De ambos os lados,
extensos e bem cuidados cafezais, fazendas
bonitas, bem tratadas, com construções
antigas bem conservadas, com todos os
sinais de uma região bastante
rica. Via-se que o solo, fértil,
gratificava quem nele derramasse o suor.
As pastagens verdejantes estavam salpicadas
por reses bonitas, raçadas, saudáveis,
enfiadas no capim viçoso até a
metade das pernas...
Sinal de pasto bom, de leite farto,
de carne gorda.
Depois de uma curva, mudança
radical na paisagem: sem qualquer transição,
do verde dos cafezais e das pastarias
bem roçadas, entraram numa área
de campos sujos, capoeiras altas e vegetação
típica de terras cansadas e abandonadas.
Logo mais à frente, o corretor
falou:
—
É aqui... Fazenda Santa Maria
da Esperança. Chegamos!
Mostrando a porteira de colchete, acrescentou:
—
Eu abro... Vamos entrar pela porteira.
Não confio nesse mata-burro.
Notaram logo que tudo ali estava jogado à própria
sorte.
A estrada de acesso deveria ter sido
muito bonita em outras épocas.
Palmeiras imperiais margeavam-na simetricamente,
havia ainda resquícios de canteiros
de flores em um ou outro lugar. Lá adiante,
beirando as ruínas de um muro,
uma primavera tinha virado árvore
de tão velha e mal cuidada e,
numa pequena descida, a erosão
destruíra as laterais da estrada
deixando apenas uma
faixa central estreita que mal dava
para o automóvel passar.
—
Está péssima a estrada!
—
Sim... Mas para nós é bom
sinal: os proprietários não
parecem estar ligando muito para isto
aqui... O que quer dizer preço
baixo!
Uma ponte semi-destruída quase
os fez descer do carro e prosseguir
a pé. Após alguns instantes
de vacilação e após
ele ter examinado criteriosa e cuidadosamente
as vigas de sustentação
da ponte, atravessaram.
—
Como é bonito! Como é encachoeirado,
este rio!
Na curva que o rio fazia cerca de duzentos
metros a jusante, havia um cruzeiro
de pedra de quase quatro metros de altura.
— Veja que bonita, aquela cruz!
Seguiram em frente e, após alguns
minutos, chegaram ao que, outrora, fora
o jardim de um enorme casarão
do final do Século XIX, completamente
abandonado e parcialmente em ruínas.
Um terreirão de secar café,
feito de tijolos grandes, à direita,
continuava-se nos galpões e nos
lavadores. À esquerda, mais perto
da entrada da varanda da velha sede,
espalhavam-se diversas árvores
que, após um exame mais atento,
mostraram ser floreiras, primaveras
e camélias. A falta de trato,
o abandono,
tinham-nas transformado em plantas sem
jeito, de tronco grosso, copadas, com
cara de mato. Um jasmineiro imenso estendia
seus galhos bifurcados por cima de uma
pequena depressão que, muito
antigamente, fora um laguinho, com repuxo
de água e tudo o mais... Flamboyants
que abrigariam sob suas largas copas
uma casa inteira, mais pareciam olmos
de tão grandes.
Tudo indicava que havia algumas décadas
que jardineiro nenhum passava por ali.
Por trás da casa, estava o que
restara do pomar.
Teria sido muito bom, bonito e produtivo
enquanto ainda cuidavam de suas fruteiras,
impedindo as ervas daninhas de invadir
as ruas do laranjal, combatendo as plantas
parasitas e não as deixando subir
pelas mangueiras e jaboticabeiras.
Ainda assim, apesar de todo esse abandono,
o chão estava forrado de frutas
que tinham caído das árvores...
Olhando para os lados e estranhando
não avistar ninguém, o
casal subiu os degraus de acesso à varanda
do casarão.
Era como qualquer casa antiga de fazenda:
imponente, de paredes grossas, portas
e janelas enormes, pé-direito
altíssimo.
O chão da varanda devia ter sido
refeito no correr dos anos, era de lajotas
portuguesas, grandes, o desenho já quase
desaparecido pelo uso e pela sujeira.
Ninguém para recebê-los,
foram dando a volta à varanda.
Esta, contornando três lados do
corpo principal da casa, mostrava que,
em outros tempos, tinha sido muito bonita
e agradável e a vista que se
podia descortinar de lá, uma
vez a fazenda novamente bem cuidada,
seria maravilhosa.
Quando chegaram à parte traseira
da construção, o cheiro
de algo cozinhando denunciou a presença
humana por ali.
—
Hummm... Esse cheirinho de refogado
está me dando fome...
Uma porta estava entreaberta e eles
bateram.
—
Pode entrar! — gritou lá de
dentro, uma voz de velho.
O corredor, comprido, escuro, de tábuas
largas e já meio carcomidas pelo
tempo e pelos cupins, fez ecoar o som
de seus passos.
— Gosto desse barulho...
Debruçado sobre uma mesa rústica
que só poderia ter sido feita
lá dentro, pois era tão
grande que jamais passaria por qualquer
das portas da casa se tivesse de ser
removida, um velho esfarrapado escolhia
feijão.
No fogão a lenha, em meio a uma
nuvem de fumaça que indicava
o entupimento da chaminé, três
panelas e uma frigideira enegrecidas
pelo uso e pela falta de limpeza. Ao
lado, um bule de café recebia
o líquido que escorria de um
coador de pano cujo cabo estava enfiado
num buraco da parede. Por todos os lados,
onde quer que se olhasse, reinavam a
sujeira e o desmazelo. No meio da cozinha,
o focinho entre as patas, um cachorro
tão velho quanto o homem que
ali se encontrava, dormia sem dar a
menor mostra de ter percebido os recém-chegados.
—
É só apurar um pouco o
feijão e já poderemos
almoçar — disse o velho,
num sorriso desdentado.
Fazendo sinal para que eles se sentassem
por ali, à beira do fogo, perguntou:
—
Vieram ver a fazenda? Estão querendo
comprar?
Ante a resposta evasiva do casal, ele
falou, com uma sombra de tristeza no
olhar:
—
A fazenda é grande... Tem muita
terra por aí. Já foi muito
boa... Muito, mesmo!
Deixando a colher com que estivera mexendo
uma das panelas sobre o fogão,
e sem se incomodar com a imundície
do lugar onde a pousara, o velho disse:
— Podem ir vendo a casa... Ela precisa
de alguns consertos, mas...
A velha mansão estava caindo
aos pedaços. Na realidade, porém,
com um pouco de dinheiro, boa vontade
e uma turma de pedreiros competentes,
conseguiriam transformá-la num
autêntico palácio. Em muitos
lugares, o telhado estava aberto, faltavam
telhas. Em outros, era o assoalho que
se mostrava esburacado, as tábuas
podres, perigosas. Num dos quartos,
uma das paredes ameaçava ruir,
rachada que estava de alto a baixo.
A poeira dominava tudo com uma espessa
camada cinza-avermelhada sobre todos
os objetos.
A casa não estava vazia. Móveis
antigos, alguns enfeites, muitas quinquilharias
do final do século passado e
do início deste, tudo isso lá estava,
na mais absoluta desordem.
A mulher se apaixonou.
Já sonhava com a reconstrução
da velha casa, mantendo a mesma distribuição,
as mesmas características, melhorando
apenas uma ou outra coisa dos banheiros...
Já idealizava a decoração
do imenso salão usando os mesmos
armários velhos que vira jogados
por ali e somando a tudo as peças
que iria buscar nos antiquários.
Sentia-se transportada para o final
do Império, chegava a ver as
aias negras circulando pela casa com
seus vestidos muito brancos, as toucas
na cabeça...
—
Esta é a fazenda com que sempre
sonhei!
O velho, acompanhando-os, mostrava pacientemente
aposento por aposento, abrindo as janelas,
deixando entrar luz naqueles quartos
que, tudo indicava, havia muito que
não viam um raio de sol.
—
Não reparem na sujeira... É que
nunca dá tempo de limpar a casa...
—
O senhor vive sozinho, aqui? Há muitos
anos?
—
Há mais de setenta anos, moça...
Nasci aqui...
—
E quantos anos faz que a fazenda está abandonada?
O velho riu com estrépito.
Era uma gargalhada completamente fora
de propósito, pois nada havia
de engraçado na pergunta.
—
Há quase cinqüenta anos,
moça... Quando fiquei sozinho
aqui, eu tinha pouco mais de vinte anos.
Terminada a visita à casa, almoçaram
e saíram para conhecer os pastos
e capoeiras da propriedade.
Apesar do completo abandono, via-se
que a terra era fértil, as matas
ricas em boas madeiras... Era só trabalhar
que a fazenda voltaria a produzir excelentes
safras.
O dia já terminava quando voltaram
para a sede.
Fazia frio e, lá para os lados
do noroeste, uma tempestade apontava.
Menos de meia hora depois, a chuva os
alcançou molhando tudo, deixando
as estradas intransitáveis.
—
Melhor vocês jantarem aqui. Com
essa chuva toda... Do jeito que está,
o carro não passa a ponte. É perigoso
até cair no rio...
Aceitaram de bom grado, mesmo por que
a comidinha porca e simples que ele
estava fazendo desprendia um aroma deliciosamente
convidadtivo.
Terminado o jantar, a chuva caía
ainda mais forte e, para agravar, começara
a ventar, um vento em rajadas, violento,
extremamente frio.
—
Com quem teremos de falar a respeito
do negócio? — perguntou
o rapaz.
—
Com um pessoal lá de Vitória — respondeu
o velho — Eles nunca vêm
aqui, já faz muitos e muitos
anos...
Calaram-se novamente, ouvindo a tempestade
lá fora, violenta, parecendo
quebrar tudo, o céu de quando
em quando rasgado por um relâmpago
fortíssimo.
O velho acendeu um toco de cigarro de
palha que tirou de trás da orelha
e disse, sem olhar para ninguém,
parecendo mais que estava pensando em
voz alta:
—
Isto aqui já foi uma fazenda
muito bonita, cheia de gado gordo, boas
lavouras... A colônia, lá embaixo,
parecia uma cidade de tanta gente que
tinha. Até escola, o patrão
pôs aqui, com professora paga
do bolso dele e tudo o mais!
Calou-se, olhando para a brasa do cigarro,
os olhos mortiços, a expressão
melancólica e triste.
—
E como é que tudo foi acabar
desta maneira? — quis saber a
moça, para estimular outra vez
a conversa.
O velho se levantou do banquinho de
tábuas em que estava sentado
e caminhou na direção
de um velho guarda-comidas ensebado
e sujo.
De repente, aos olhos dos visitantes,
ele pareceu muito mais velho e alquebrado
do que até poucos momentos atrás,
movendo as pernas com dificuldade, as
costas arqueadas...
Pegou de dentro do guarda-comidas uma
garrafa de cachaça, encheu um
copo com a bebida, ofereceu para os
demais e, como recusassem, ergueu os
ombros, indiferente. De uma só golada,
esvaziou o copo, encheu-o novamente
e disse:
—
Dona... É uma história
muito triste...
* * * *
Sessenta anos atrás, a Fazenda
Santa Maria da Esperança era
a melhor e mais produtiva de toda a
região.
Os proprietários, morando naquela
mesma sede, desdobravam-se em melhorar
e aumentar a fazenda, em modernizá-la,
em fazê-la produzir cada vez
mais. Na verdade, era essa a mentalidade
da maioria dos proprietários
rurais da época. A diferença
estava no fato de que estes, os donos
da Santa Maria da Esperança,
jamais terem descuidado um momento
sequer do bem estar de seus empregados
e sempre permitiam àqueles que
de alguma maneira se destacavam, uma
oportunidade de progredir na vida.
Foi justamente isso o que aconteceu
com ele.
Filho de um dos mais fortes meieiros
da fazenda, criado na base do ferro
e do relho, sem a menor folga para
nada, cedo descobrira que a melhor
maneira de não ter que se matar
demais no serviço do campo era
se destacando na escola.
Foi justamente o que fez.
Esforçou-se para aprender letras
e números, rachou a cabeça
e queimou as pestanas fazendo contas.
Teve sua recompensa: o patrão
ficou sabendo de todo esse esforço
e chamou-o para trabalhar no escritório.
Logo mostrou seu valor.
Com pouco mais de vinte anos de idade,
era responsável, competente,
conseguia dar conta de tudo quanto
o patrão mandava fazer e jamais
deixou algo para o dia seguinte. Mesmo
que precisasse varar a noite debruçado
sobre os livros da fazenda, ele sempre
acabava a empreitada dentro do prazo.
Tornou-se o funcionário mais
importante e mais querido da fazenda
e, conseqüentemente, um dos que
recebiam salários mais altos.
Seus ganhos eram iguais ao do engenheiro
agrônomo e do veterinário,
para se ter uma idéia.
—
Continue assim, rapaz! — dizia-lhe
o patrão — Você irá longe!
Muito longe!
E ele continuou.
Trabalhava como um mouro escravo, estava
sempre bem disposto e sorridente, não
reclamava de nada.
Ajudado pelo filho, seu pai resolveu
comprar uma terrinha no norte do Estado
e, um belo dia, para lá se mudou.
Ele não o quis acompanhar.
Preferiu ficar ali no escritório
da fazenda, sabia que teria muito mais
futuro e trabalho menos pesado do que
sob o comando e jugo de seu pai. De
mais a mais, ele gostava do trabalho
no escritório e...
Havia um outro motivo, e bem mais forte
do qualquer outro que o impedia de
deixar a Santa Maria da Esperança...
E esse motivo chamava-se Adelaide.
Adelaide era a filha única do
patrão.
Assim, era de se esperar que fosse
a menina dos olhos do fazendeiro e,
com quinze anos de beleza e graça,
ela iluminava toda a Santa Maria e,
especialmente, a alma do jovem escriturário.
No começo, ele apenas percebeu
que se sentia um pouco diferente quando
a via e, pior ainda, quando por um
dia inteiro ela deixava de descer ao
escritório, fosse para dar um
recado, fosse simplesmente para dar
um beijo no pai.
Depois, foi se rendendo à realidade:
era fortemente atraído por ela,
estava apaixonado.
Viu, desesperado, que a amava perdidamente,
que não saberia ser de outra
mulher, que a desejava acima de qualquer
outra coisa na vida.
Encorajado por um ou dois sorrisos
e movido pelo combustível do
amor, já nessas alturas completamente
irracional, começou a cortejá-la.
Trazia-lhe uma flor, arranjava-lhe
uma fruta do mato numa cestinha de
taquara que passara a noite inteira
fazendo...
Um dia, trouxe-lhe uma gaiola de pauzinhos,
grande, bonita, muito bem trabalhada.
Demorara quase um mês para fabricá-la,
quase um mês sonhando com ela,
com o sorriso que daria quando recebesse
o presente.
Estudou cuidadosamente o que diria,
pensou, repensou, decidiu.
—
É para você me prender nela
um dia — falou, muito vermelho,
quase sem acreditar que conseguira juntar
coragem bastante para pronunciar essas
palavras.
Adelaide ouviu, entendeu a frase, corou
muito e agradeceu.
Passou três dias sem ir ao escritório,
deixando-o desesperado, sem saber o
que fazer.
No quarto dia, olhando por acaso — ou
será que não teria sido
tão por acaso assim? — para
a janela do quarto de Adelaide, viu
a gaiola que fizera dependurada na
janela.
Vazia.
Sem nenhum passarinho dentro.
Entusiasmou-se.
Então, ela não tinha
jogado fora seu presente!
Sentiu renascer em seu peito, as esperanças.
Passou todo o fim-de-semana tentando
apanhar, no alçapão,
um curió.
Finalmente conseguiu e, incontinenti,
foi levá-lo para a moça.
No dia seguinte, olhando para a gaiola,
constatou que ela ainda estava vazia.
Quando Adelaide passou pelo escritório
para falar com o pai, deu um jeito
de lhe perguntar:
—
E o curió?
—
Ah! — fez a moça, ficando
muito vermelha — Eu soltei...
E, antes que ele pudesse protestar,
ela continuou:
—
Se o pusesse na gaiola, não
teria lugar para prender você...
O casamento se realizou um ano e meio
depois, uma festa que sacudiu a fazenda
e toda a região, por uma semana
inteira.
A Fazenda Santa Maria da Esperança
se transformou, para ele, naquilo que
se poderia chamar de recanto da felicidade.
E da prosperidade.
Ao mesmo tempo em que a família
aumentara, chegara o progresso, com
máquinas modernas para beneficiar
arroz e café, tratores, grades,
discos de arado, luz elétrica...
Ela estava mais bonita do que nunca,
ele não cabia em si de tanta
felicidade, de tanta confiança
no futuro.
Alguns meses depois de casada, o volume
mal disfarçado de sua barriga
mostrava que esse amor, fértil
como as terras da Santa Maria da Esperança,
já estava prestes a frutificar.
Uma madrugada de chuva — chovia
a cântaros naquela longínqua
noite — o bebê deu o primeiro
sinal de querer nascer.
A família toda, alvoroçada,
movimentou a fazenda.
—
Chamem a Quinca Parteira! — sugeriram
alguns.
Querendo o melhor para a filha, o fazendeiro
achou que deveriam levá-la para
a vila. Seria uma viagem de hora e
meia de automóvel e sempre ela
poderia contar com a assistência
do médico.
—
Vamos só esperar que a chuva
melhore um pouco.
Decidira que levaria a filha para a
vila, acompanhado da mãe, enquanto
o marido ficava em casa para, principalmente,
não atrapalhar com o nervosismo
característico do marinheiro
de primeira viagem.
Numa estiada da chuva, partiram.
Ele ficou no terraço, por um
bom tempo, olhando para a chuva que
recomeçara, preocupado, tenso,
nervoso.
Depois, já o dia começando
a amanhecer, um dos peões da
fazenda veio correndo com a notícia:
—
Eles caíram no rio! Caíram
da ponte!
Por um bom par de minutos, ele não
teve qualquer reação.
A boca aberta, o cigarro entre os dedos,
o olhar parado, foi preciso que o peão
o sacudisse para que voltasse à realidade,
para que compreendesse que uma tragédia
acontecera.
Atordoado, como se estivesse vivendo
um pesadelo, foi até o local
do acidente.
Ainda pode ver as marcas da derrapagem,
a guarda da ponte quebrada no lugar
onde o carro despencara.
Todos os três mortos. Aliás,
todos os quatro.
A correnteza, muito forte por causa
da enchente, arrastara o automóvel,
enchendo-o de água e não
dando tempo de ninguém se salvar.
Herdou tudo, é claro... Porém,
desestimulado, começou a beber
e logo já se descuidava de tudo,
da terra, de si mesmo.
Os meieiros e empregados foram embora,
e a antes próspera Fazenda Santa
Maria da Esperança, transformou-se
numa grande gleba de terras abandonadas.
Sem produção, não
há dinheiro e, para poder sobreviver,
hipotecou a propriedade para um grupo
de Vitória que, no prazo certo,
executou a dívida e ficou com
a fazenda.
Grupo importante, com intenção
apenas de imobilizar patrimônios,
fez com ele um contrato de comodato
e, assim, ele lá ficou, como
um guardião, como vigia de uma
fazenda que já fora sua e que,
de repente, não o era mais.
* * * *
— Foi assim, dona — disse
o velho, a voz trêmula — Foi
assim que esta fazenda acabou como
está...
O silêncio caiu sobre eles, pesado,
denso, espesso como uma neblina de
inverno.
Afinal, ela perguntou:
—
Porque o senhor não vai embora
daqui? Não deve ser bom permanecer
num lugar com tantas recordações,
com tantas marcas do passado!
—
Ah, dona! — fez ele — Não
posso ir embora...
Baixando a voz, explicou:
—
Nas noites de tempestade, ela vem me
visitar... Ela e meu filho! Eu ficarei
aqui, esperando... Um dia, ela virá para
me buscar e aí sim, poderei
deixar de esperar...
Subitamente, a tempestade aumentou.
Cientes da impossibilidade de voltar
para a cidade, o casal resolveu aceitar
o oferecimento do velho de ali passarem
a noite e acomodaram-se, da melhor
maneira que puderam, apenas com o intuito
de cochilar um pouco.
—
Partiremos pela manhã.
Cerca de duas horas depois de terem
ido para a cama, escutaram passos pelos
corredores, o assoalho rangendo sob
o peso de pisadas.
—
O velho deve sofrer de insônia...
De repente, ouviram nitidamente o choro
de uma criança e as risadas
de um homem e de uma mulher.
Risadas jovens, de gente moça,
gente que não estava na casa
quando eles tinham ido deitar...
Levantaram-se, intrigados, curiosos,
querendo saber como é que alguém
teria conseguido chegar até ali
com a estrada daquele jeito.
Então, eles viram...
Num canto da sala, havia um moço
desempenado e robusto, com uma criança
no colo e, ao seu lado, uma moça
alta e muito bonita, usando um vestido
de seda e com uma echarpe branca jogada
displicentemente ao redor de seu pescoço.
Uma tênue luz azulada envolvia
os três e eles reconheceram as
feições remoçadas,
muito remoçadas, daquele velho
que lhes estivera contando a história
da Fazenda Santa Maria da Esperança.
Sentiram sono...
Um sono profundo, pesado, que os fez
adormecer ali mesmo, na sala, sobre
os estofados meio apodrecidos da casa.
Acordaram bem tarde, sem o menor sinal
de tempestade, o sol já alto...
Chamaram pelo velho, não obtiveram
resposta.
Entreolharam-se. — Não — disse
o marido, antecipando-se à pergunta
da mulher — Não foi um
sonho... Tenho certeza de que vivenciamos
algo muito estranho!
Caminharam até a cozinha, chamaram
novamente pelo velho.
Mais uma vez, sem sucesso.
Já preocupados, começaram
a vasculhar a casa.
Encontraram-no.
Estava num catre, num quartinho miserável,
parecia estar dormindo, tão
sossegadamente morrera.
Ao seu lado, no chão, uma echarpe
branca.
Incrivelmente branca e limpa para ter
estado naquela casa por muito tempo...
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