Espera na Eternidade

Fazendas Santas Marias existem às dúzias, provavelmente às centenas.

Em cada município podemos encontrar pelo menos uma, grande ou pequena, bonita ou feia, bem explorada ou até mesmo abandonada.

Geralmente, talvez para diminuir um pouco a confusão e para personalizar sua propriedade, há quem as faça Santa Maria de Alguma Coisa: Santa Maria da Ponte Preta, Santa Maria da Mata Adentro, Santa Maria do Rio Acima e por aí vai. Em Minas Gerais, perto de Poços de Caldas, há uma Fazenda Santa Maria do Rego. Seu proprietário, um estrangeiro apaixonado pela região, demorou muito tempo para descobrir por que diabos todos sorriam quando ele dizia o nome de suas terras. Quando ficou sabendo o significado jocoso-pejorativo do termo "rego", achou que era melhor mudar alguma coisa no nome da propriedade. Depois de muito pensar, chegou à conclusão que o melhor era ela passar a se chamar Fazenda Santa Maria do Rego Fundo...

Mas, a intenção não é fazer um ensaio sobre nomes de fazendas...

A intenção é, tão simplesmente, contar uma história que, segundo as pessoas que a trasmitem de boca a ouvido na região serrana do Espírito Santo, é absolutamente verídica, por mais fantástica que possa parecer.

De natureza homem do campo e por profissão preso a uma escrivaninha na cidade, sua diversão nos fins-de-semana era passear pelo interior visitando e conhecendo fazendas.

Costumava dizer que não poderia morrer sem ser um proprietário rural e, se isso viesse a acontecer, ele passaria o resto da eternidade assombrando aqueles que, de uma maneira ou de outra, tivessem contribuído para que seu sonho não se realizasse.

Assim, ele e a mulher , aliás companheira fiel de sonhos e passeios agrários, conheciam como a palma da mão quase toda a região agrícola daquela parte do Estado. Bem poucas estradas, boas ou ruins, deixaram de ser trilhadas e esmiuçadas em cada quilômetro, em busca de uma fazendinha, de um simples sítio que fosse, com que eles pudessem fazer contas e sonhar.

Viram de tudo.

Desde belas fazendas e imponentes propriedades com casas senhoriais do século passado, até sitiocas pobres, com ranchos de pau-a-pique ou casinhas humildes de barro batido.

— Precisamos encontrar uma área boa, com uma casa bem antiga e em razoável estado de conservação. O problema é que precisa ser bem barato... Na bacia das almas!

E toca a procurar, a tomar informações, a sondar um, perguntar para outro...

Souberam, através de um amigo, da Fazenda Santa Maria da Esperança.

Estava à venda e, como se tratava de uma partilha de espólio ainda em inventário, o preço estava muito tentador, os herdeiros precisando urgentemente de dinheiro para poderem tocar o restante do processo.

— Se você não comprar — disse-lhe o amigo — outro vai lá e arremata. E eu tenho certeza de que é justamente o lugar com que vocês tanto sonharam por todos estes anos.

Marcaram a viagem para o final de semana, fizeram as contas, montaram uma proposta de compra e sonharam, durante quatro noites, com a tal fazenda.

Finalmente, o fim-de-semana chegou e, bem cedo, eles partiram.

Com pouco mais de quatro horas, chegaram à cidadezinha próxima à tal propriedade.

Ela logo se apaixonou:

— É o tipo de cidadezinha que eu adoro! Olhe só que calma! Que paz! É um perfeito paraíso!

Passaram o dia por ali, almoçaram numa espécie de restaurante e pensão, ouviram a banda municipal tocando no coreto da praça, namoraram de mãos dadas sentados num banco, no jardim em frente à igreja, até Missa eles assistiram!

Esqueceram-se de que estavam no final do Século XX, sentiram-se transportados para várias décadas atrás, para a época de 1930, quem sabe...

Dormiram na casa do médico da cidade que, solícito, ofereceu-lhes pousada explicando que, por pior que ficassem instalados em sua casa, estariam melhor do que na pensão, onde provavelmente teriam que disputar lugar na cama com percevejos e pulgas.

Logicamente, eles não acreditaram, acharam que o doutor estava falando aquelas coisas apenas por que queria tê-los em sua residência...

No dia seguinte, ainda escuro, levantaram-se cheios de ânimo para conhecer a fazenda.

— Até o nome é sugestivo — disse o corretor encarregado de intermediar a negociação — Fazenda Santa Maria da Esperança... Não se pode dizer que seja um nome feio!

Região cafeeira, dava gosto andar por aquela estrada. De ambos os lados, extensos e bem cuidados cafezais, fazendas bonitas, bem tratadas, com construções antigas bem conservadas, com todos os sinais de uma região bastante rica. Via-se que o solo, fértil, gratificava quem nele derramasse o suor.

As pastagens verdejantes estavam salpicadas por reses bonitas, raçadas, saudáveis, enfiadas no capim viçoso até a metade das pernas...

Sinal de pasto bom, de leite farto, de carne gorda.

Depois de uma curva, mudança radical na paisagem: sem qualquer transição, do verde dos cafezais e das pastarias bem roçadas, entraram numa área de campos sujos, capoeiras altas e vegetação típica de terras cansadas e abandonadas.

Logo mais à frente, o corretor falou:

— É aqui... Fazenda Santa Maria da Esperança. Chegamos!

Mostrando a porteira de colchete, acrescentou:

— Eu abro... Vamos entrar pela porteira. Não confio nesse mata-burro.

Notaram logo que tudo ali estava jogado à própria sorte.

A estrada de acesso deveria ter sido muito bonita em outras épocas.

Palmeiras imperiais margeavam-na simetricamente, havia ainda resquícios de canteiros de flores em um ou outro lugar. Lá adiante, beirando as ruínas de um muro, uma primavera tinha virado árvore de tão velha e mal cuidada e, numa pequena descida, a erosão destruíra as laterais da estrada deixando apenas uma
faixa central estreita que mal dava para o automóvel passar.

— Está péssima a estrada!

— Sim... Mas para nós é bom sinal: os proprietários não parecem estar ligando muito para isto aqui... O que quer dizer preço baixo!

Uma ponte semi-destruída quase os fez descer do carro e prosseguir a pé. Após alguns instantes de vacilação e após ele ter examinado criteriosa e cuidadosamente as vigas de sustentação da ponte, atravessaram.

— Como é bonito! Como é encachoeirado, este rio!

Na curva que o rio fazia cerca de duzentos metros a jusante, havia um cruzeiro de pedra de quase quatro metros de altura.

— Veja que bonita, aquela cruz!

Seguiram em frente e, após alguns minutos, chegaram ao que, outrora, fora o jardim de um enorme casarão do final do Século XIX, completamente abandonado e parcialmente em ruínas.

Um terreirão de secar café, feito de tijolos grandes, à direita, continuava-se nos galpões e nos lavadores. À esquerda, mais perto da entrada da varanda da velha sede, espalhavam-se diversas árvores que, após um exame mais atento, mostraram ser floreiras, primaveras e camélias. A falta de trato, o abandono,
tinham-nas transformado em plantas sem jeito, de tronco grosso, copadas, com cara de mato. Um jasmineiro imenso estendia seus galhos bifurcados por cima de uma pequena depressão que, muito antigamente, fora um laguinho, com repuxo de água e tudo o mais... Flamboyants que abrigariam sob suas largas copas uma casa inteira, mais pareciam olmos de tão grandes.

Tudo indicava que havia algumas décadas que jardineiro nenhum passava por ali.

Por trás da casa, estava o que restara do pomar.

Teria sido muito bom, bonito e produtivo enquanto ainda cuidavam de suas fruteiras, impedindo as ervas daninhas de invadir as ruas do laranjal, combatendo as plantas parasitas e não as deixando subir pelas mangueiras e jaboticabeiras.

Ainda assim, apesar de todo esse abandono, o chão estava forrado de frutas que tinham caído das árvores...
Olhando para os lados e estranhando não avistar ninguém, o casal subiu os degraus de acesso à varanda do casarão.

Era como qualquer casa antiga de fazenda: imponente, de paredes grossas, portas e janelas enormes, pé-direito altíssimo.

O chão da varanda devia ter sido refeito no correr dos anos, era de lajotas portuguesas, grandes, o desenho já quase desaparecido pelo uso e pela sujeira.

Ninguém para recebê-los, foram dando a volta à varanda.

Esta, contornando três lados do corpo principal da casa, mostrava que, em outros tempos, tinha sido muito bonita e agradável e a vista que se podia descortinar de lá, uma vez a fazenda novamente bem cuidada, seria maravilhosa.

Quando chegaram à parte traseira da construção, o cheiro de algo cozinhando denunciou a presença humana por ali.

— Hummm... Esse cheirinho de refogado está me dando fome...

Uma porta estava entreaberta e eles bateram.

— Pode entrar! — gritou lá de dentro, uma voz de velho.

O corredor, comprido, escuro, de tábuas largas e já meio carcomidas pelo tempo e pelos cupins, fez ecoar o som de seus passos.

— Gosto desse barulho...

Debruçado sobre uma mesa rústica que só poderia ter sido feita lá dentro, pois era tão grande que jamais passaria por qualquer das portas da casa se tivesse de ser removida, um velho esfarrapado escolhia feijão.

No fogão a lenha, em meio a uma nuvem de fumaça que indicava o entupimento da chaminé, três panelas e uma frigideira enegrecidas pelo uso e pela falta de limpeza. Ao lado, um bule de café recebia o líquido que escorria de um coador de pano cujo cabo estava enfiado num buraco da parede. Por todos os lados, onde quer que se olhasse, reinavam a sujeira e o desmazelo. No meio da cozinha, o focinho entre as patas, um cachorro tão velho quanto o homem que ali se encontrava, dormia sem dar a menor mostra de ter percebido os recém-chegados.

— É só apurar um pouco o feijão e já poderemos almoçar — disse o velho, num sorriso desdentado.
Fazendo sinal para que eles se sentassem por ali, à beira do fogo, perguntou:

— Vieram ver a fazenda? Estão querendo comprar?

Ante a resposta evasiva do casal, ele falou, com uma sombra de tristeza no olhar:

— A fazenda é grande... Tem muita terra por aí. Já foi muito boa... Muito, mesmo!

Deixando a colher com que estivera mexendo uma das panelas sobre o fogão, e sem se incomodar com a imundície do lugar onde a pousara, o velho disse:

— Podem ir vendo a casa... Ela precisa de alguns consertos, mas...

A velha mansão estava caindo aos pedaços. Na realidade, porém, com um pouco de dinheiro, boa vontade e uma turma de pedreiros competentes, conseguiriam transformá-la num autêntico palácio. Em muitos lugares, o telhado estava aberto, faltavam telhas. Em outros, era o assoalho que se mostrava esburacado, as tábuas podres, perigosas. Num dos quartos, uma das paredes ameaçava ruir, rachada que estava de alto a baixo.

A poeira dominava tudo com uma espessa camada cinza-avermelhada sobre todos os objetos.

A casa não estava vazia. Móveis antigos, alguns enfeites, muitas quinquilharias do final do século passado e do início deste, tudo isso lá estava, na mais absoluta desordem.

A mulher se apaixonou.

Já sonhava com a reconstrução da velha casa, mantendo a mesma distribuição, as mesmas características, melhorando apenas uma ou outra coisa dos banheiros... Já idealizava a decoração do imenso salão usando os mesmos armários velhos que vira jogados por ali e somando a tudo as peças que iria buscar nos antiquários.

Sentia-se transportada para o final do Império, chegava a ver as aias negras circulando pela casa com seus vestidos muito brancos, as toucas na cabeça...

— Esta é a fazenda com que sempre sonhei!

O velho, acompanhando-os, mostrava pacientemente aposento por aposento, abrindo as janelas, deixando entrar luz naqueles quartos que, tudo indicava, havia muito que não viam um raio de sol.

— Não reparem na sujeira... É que nunca dá tempo de limpar a casa...

— O senhor vive sozinho, aqui? Há muitos anos?

— Há mais de setenta anos, moça... Nasci aqui...

— E quantos anos faz que a fazenda está abandonada?

O velho riu com estrépito.

Era uma gargalhada completamente fora de propósito, pois nada havia de engraçado na pergunta.

— Há quase cinqüenta anos, moça... Quando fiquei sozinho aqui, eu tinha pouco mais de vinte anos.

Terminada a visita à casa, almoçaram e saíram para conhecer os pastos e capoeiras da propriedade.

Apesar do completo abandono, via-se que a terra era fértil, as matas ricas em boas madeiras... Era só trabalhar que a fazenda voltaria a produzir excelentes safras.

O dia já terminava quando voltaram para a sede.

Fazia frio e, lá para os lados do noroeste, uma tempestade apontava.

Menos de meia hora depois, a chuva os alcançou molhando tudo, deixando as estradas intransitáveis.

— Melhor vocês jantarem aqui. Com essa chuva toda... Do jeito que está, o carro não passa a ponte. É perigoso até cair no rio...

Aceitaram de bom grado, mesmo por que a comidinha porca e simples que ele estava fazendo desprendia um aroma deliciosamente convidadtivo.

Terminado o jantar, a chuva caía ainda mais forte e, para agravar, começara a ventar, um vento em rajadas, violento, extremamente frio.

— Com quem teremos de falar a respeito do negócio? — perguntou o rapaz.

— Com um pessoal lá de Vitória — respondeu o velho — Eles nunca vêm aqui, já faz muitos e muitos anos...

Calaram-se novamente, ouvindo a tempestade lá fora, violenta, parecendo quebrar tudo, o céu de quando em quando rasgado por um relâmpago fortíssimo.

O velho acendeu um toco de cigarro de palha que tirou de trás da orelha e disse, sem olhar para ninguém, parecendo mais que estava pensando em voz alta:

— Isto aqui já foi uma fazenda muito bonita, cheia de gado gordo, boas lavouras... A colônia, lá embaixo, parecia uma cidade de tanta gente que tinha. Até escola, o patrão pôs aqui, com professora paga do bolso dele e tudo o mais!

Calou-se, olhando para a brasa do cigarro, os olhos mortiços, a expressão melancólica e triste.

— E como é que tudo foi acabar desta maneira? — quis saber a moça, para estimular outra vez a conversa.

O velho se levantou do banquinho de tábuas em que estava sentado e caminhou na direção de um velho guarda-comidas ensebado e sujo.

De repente, aos olhos dos visitantes, ele pareceu muito mais velho e alquebrado do que até poucos momentos atrás, movendo as pernas com dificuldade, as costas arqueadas...

Pegou de dentro do guarda-comidas uma garrafa de cachaça, encheu um copo com a bebida, ofereceu para os demais e, como recusassem, ergueu os ombros, indiferente. De uma só golada, esvaziou o copo, encheu-o novamente e disse:

— Dona... É uma história muito triste...

* * * *

Sessenta anos atrás, a Fazenda Santa Maria da Esperança era a melhor e mais produtiva de toda a região.


Os proprietários, morando naquela mesma sede, desdobravam-se em melhorar e aumentar a fazenda, em modernizá-la, em fazê-la produzir cada vez mais. Na verdade, era essa a mentalidade da maioria dos proprietários rurais da época. A diferença estava no fato de que estes, os donos da Santa Maria da Esperança, jamais terem descuidado um momento sequer do bem estar de seus empregados e sempre permitiam àqueles que de alguma maneira se destacavam, uma oportunidade de progredir na vida.

Foi justamente isso o que aconteceu com ele.

Filho de um dos mais fortes meieiros da fazenda, criado na base do ferro e do relho, sem a menor folga para nada, cedo descobrira que a melhor maneira de não ter que se matar demais no serviço do campo era se destacando na escola.

Foi justamente o que fez.

Esforçou-se para aprender letras e números, rachou a cabeça e queimou as pestanas fazendo contas.

Teve sua recompensa: o patrão ficou sabendo de todo esse esforço e chamou-o para trabalhar no escritório.

Logo mostrou seu valor.

Com pouco mais de vinte anos de idade, era responsável, competente, conseguia dar conta de tudo quanto o patrão mandava fazer e jamais deixou algo para o dia seguinte. Mesmo que precisasse varar a noite debruçado sobre os livros da fazenda, ele sempre acabava a empreitada dentro do prazo.

Tornou-se o funcionário mais importante e mais querido da fazenda e, conseqüentemente, um dos que recebiam salários mais altos. Seus ganhos eram iguais ao do engenheiro agrônomo e do veterinário, para se ter uma idéia.

— Continue assim, rapaz! — dizia-lhe o patrão — Você irá longe! Muito longe!

E ele continuou.

Trabalhava como um mouro escravo, estava sempre bem disposto e sorridente, não reclamava de nada.

Ajudado pelo filho, seu pai resolveu comprar uma terrinha no norte do Estado e, um belo dia, para lá se mudou.

Ele não o quis acompanhar.

Preferiu ficar ali no escritório da fazenda, sabia que teria muito mais futuro e trabalho menos pesado do que sob o comando e jugo de seu pai. De mais a mais, ele gostava do trabalho no escritório e...

Havia um outro motivo, e bem mais forte do qualquer outro que o impedia de deixar a Santa Maria da Esperança...

E esse motivo chamava-se Adelaide.

Adelaide era a filha única do patrão.

Assim, era de se esperar que fosse a menina dos olhos do fazendeiro e, com quinze anos de beleza e graça, ela iluminava toda a Santa Maria e, especialmente, a alma do jovem escriturário.

No começo, ele apenas percebeu que se sentia um pouco diferente quando a via e, pior ainda, quando por um dia inteiro ela deixava de descer ao escritório, fosse para dar um recado, fosse simplesmente para dar um beijo no pai.

Depois, foi se rendendo à realidade: era fortemente atraído por ela, estava apaixonado.

Viu, desesperado, que a amava perdidamente, que não saberia ser de outra mulher, que a desejava acima de qualquer outra coisa na vida.

Encorajado por um ou dois sorrisos e movido pelo combustível do amor, já nessas alturas completamente irracional, começou a cortejá-la.

Trazia-lhe uma flor, arranjava-lhe uma fruta do mato numa cestinha de taquara que passara a noite inteira fazendo...

Um dia, trouxe-lhe uma gaiola de pauzinhos, grande, bonita, muito bem trabalhada. Demorara quase um mês para fabricá-la, quase um mês sonhando com ela, com o sorriso que daria quando recebesse o presente.

Estudou cuidadosamente o que diria, pensou, repensou, decidiu.

— É para você me prender nela um dia — falou, muito vermelho, quase sem acreditar que conseguira juntar coragem bastante para pronunciar essas palavras.

Adelaide ouviu, entendeu a frase, corou muito e agradeceu.

Passou três dias sem ir ao escritório, deixando-o desesperado, sem saber o que fazer.

No quarto dia, olhando por acaso — ou será que não teria sido tão por acaso assim? — para a janela do quarto de Adelaide, viu a gaiola que fizera dependurada na janela.

Vazia.

Sem nenhum passarinho dentro.

Entusiasmou-se.

Então, ela não tinha jogado fora seu presente!

Sentiu renascer em seu peito, as esperanças.

Passou todo o fim-de-semana tentando apanhar, no alçapão, um curió.

Finalmente conseguiu e, incontinenti, foi levá-lo para a moça.

No dia seguinte, olhando para a gaiola, constatou que ela ainda estava vazia.

Quando Adelaide passou pelo escritório para falar com o pai, deu um jeito de lhe perguntar:

— E o curió?

— Ah! — fez a moça, ficando muito vermelha — Eu soltei...

E, antes que ele pudesse protestar, ela continuou:

— Se o pusesse na gaiola, não teria lugar para prender você...

O casamento se realizou um ano e meio depois, uma festa que sacudiu a fazenda e toda a região, por uma semana inteira.

A Fazenda Santa Maria da Esperança se transformou, para ele, naquilo que se poderia chamar de recanto da felicidade.

E da prosperidade.

Ao mesmo tempo em que a família aumentara, chegara o progresso, com máquinas modernas para beneficiar arroz e café, tratores, grades, discos de arado, luz elétrica...

Ela estava mais bonita do que nunca, ele não cabia em si de tanta felicidade, de tanta confiança no futuro.

Alguns meses depois de casada, o volume mal disfarçado de sua barriga mostrava que esse amor, fértil como as terras da Santa Maria da Esperança, já estava prestes a frutificar.

Uma madrugada de chuva — chovia a cântaros naquela longínqua noite — o bebê deu o primeiro sinal de querer nascer.

A família toda, alvoroçada, movimentou a fazenda.

— Chamem a Quinca Parteira! — sugeriram alguns.

Querendo o melhor para a filha, o fazendeiro achou que deveriam levá-la para a vila. Seria uma viagem de hora e meia de automóvel e sempre ela poderia contar com a assistência do médico.

— Vamos só esperar que a chuva melhore um pouco.

Decidira que levaria a filha para a vila, acompanhado da mãe, enquanto o marido ficava em casa para, principalmente, não atrapalhar com o nervosismo característico do marinheiro de primeira viagem.

Numa estiada da chuva, partiram.

Ele ficou no terraço, por um bom tempo, olhando para a chuva que recomeçara, preocupado, tenso, nervoso.

Depois, já o dia começando a amanhecer, um dos peões da fazenda veio correndo com a notícia:

— Eles caíram no rio! Caíram da ponte!

Por um bom par de minutos, ele não teve qualquer reação.

A boca aberta, o cigarro entre os dedos, o olhar parado, foi preciso que o peão o sacudisse para que voltasse à realidade, para que compreendesse que uma tragédia acontecera.

Atordoado, como se estivesse vivendo um pesadelo, foi até o local do acidente.

Ainda pode ver as marcas da derrapagem, a guarda da ponte quebrada no lugar onde o carro despencara.

Todos os três mortos. Aliás, todos os quatro.

A correnteza, muito forte por causa da enchente, arrastara o automóvel, enchendo-o de água e não dando tempo de ninguém se salvar.

Herdou tudo, é claro... Porém, desestimulado, começou a beber e logo já se descuidava de tudo, da terra, de si mesmo.

Os meieiros e empregados foram embora, e a antes próspera Fazenda Santa Maria da Esperança, transformou-se numa grande gleba de terras abandonadas.

Sem produção, não há dinheiro e, para poder sobreviver, hipotecou a propriedade para um grupo de Vitória que, no prazo certo, executou a dívida e ficou com a fazenda.

Grupo importante, com intenção apenas de imobilizar patrimônios, fez com ele um contrato de comodato e, assim, ele lá ficou, como um guardião, como vigia de uma fazenda que já fora sua e que, de repente, não o era mais.

* * * *

— Foi assim, dona — disse o velho, a voz trêmula — Foi assim que esta fazenda acabou como está...

O silêncio caiu sobre eles, pesado, denso, espesso como uma neblina de inverno.

Afinal, ela perguntou:

— Porque o senhor não vai embora daqui? Não deve ser bom permanecer num lugar com tantas recordações, com tantas marcas do passado!

— Ah, dona! — fez ele — Não posso ir embora...

Baixando a voz, explicou:

— Nas noites de tempestade, ela vem me visitar... Ela e meu filho! Eu ficarei aqui, esperando... Um dia, ela virá para me buscar e aí sim, poderei deixar de esperar...
Subitamente, a tempestade aumentou.

Cientes da impossibilidade de voltar para a cidade, o casal resolveu aceitar o oferecimento do velho de ali passarem a noite e acomodaram-se, da melhor maneira que puderam, apenas com o intuito de cochilar um pouco.

— Partiremos pela manhã.

Cerca de duas horas depois de terem ido para a cama, escutaram passos pelos corredores, o assoalho rangendo sob o peso de pisadas.

— O velho deve sofrer de insônia...

De repente, ouviram nitidamente o choro de uma criança e as risadas de um homem e de uma mulher.

Risadas jovens, de gente moça, gente que não estava na casa quando eles tinham ido deitar...

Levantaram-se, intrigados, curiosos, querendo saber como é que alguém teria conseguido chegar até ali com a estrada daquele jeito.

Então, eles viram...

Num canto da sala, havia um moço desempenado e robusto, com uma criança no colo e, ao seu lado, uma moça alta e muito bonita, usando um vestido de seda e com uma echarpe branca jogada displicentemente ao redor de seu pescoço.

Uma tênue luz azulada envolvia os três e eles reconheceram as feições remoçadas, muito remoçadas, daquele velho que lhes estivera contando a história da Fazenda Santa Maria da Esperança.

Sentiram sono...

Um sono profundo, pesado, que os fez adormecer ali mesmo, na sala, sobre os estofados meio apodrecidos da casa.

Acordaram bem tarde, sem o menor sinal de tempestade, o sol já alto...

Chamaram pelo velho, não obtiveram resposta.

Entreolharam-se. — Não — disse o marido, antecipando-se à pergunta da mulher — Não foi um sonho... Tenho certeza de que vivenciamos algo muito estranho!

Caminharam até a cozinha, chamaram novamente pelo velho.

Mais uma vez, sem sucesso.

Já preocupados, começaram a vasculhar a casa.

Encontraram-no.

Estava num catre, num quartinho miserável, parecia estar dormindo, tão sossegadamente morrera.

Ao seu lado, no chão, uma echarpe branca.

Incrivelmente branca e limpa para ter estado naquela casa por muito tempo...