A Malhação
cerebral de Ryoki e Nicole
Em torno do 450º livro, ele data, aí por 1989, registrou-se enfim
uma discreta decolagem financeira. Mas Ryoki teve que esperar até 1992
para ver, como qualquer autor, seu nome na capa de um livro: o de número
1 000, momento emocionante em que, de quebra, deixou de simplesmente vender
originais para ganhar direito aos 10% sobre o preço de capa, e trocou
as bancas de jornais pelas livrarias. Manteve, porém, o esquema de trabalhar
com diversas editoras, pois uma apenas não daria conta de desovar toda
a sua produção. Prefaciado pelo repórter da Rede Globo
Alexandre Garcia, o romance que marcou a guinada, E Agora, Presidente? — o
maior que já escreveu, com 435 páginas —, conta à história
de um político americano que se descobre portador do vírus da
Aids.
Aquele foi, para Ryoki, um acontecimento especialíssimo, com sabor de
estréia embora já houvesse publicado 999 títulos — e é pena
que não tenha como saber qual foi o 999º: algum entre as dezenas
que havia entregue a duas editoras e que foram lançados em desordem.
Foi também por essa altura que Ryoki Inoue entrou no Guinness, primeiro
na edição nacional, depois na internacional — o que lhe
custou não pouco trabalho, pois teve que provar, papéis na mão,
que havia escrito todos aqueles livros, suplantando um certo Marcial Lafuente
Estefania, cidadão espanhol, até então recordista mundial
com seus 752 títulos.
Começou a ser requisitado para entrevistas, apareceu no Fantástico,
no Globo Repórter, foi duas vezes ao programa de Jô Soares. Os
livros de sua nova fase, como E Agora, Presidente? e A Bruxa, já venderam,
ele conta, em torno de nada desprezíveis 17 000 exemplares cada um.
Sai bem, igualmente, O Caminho das Pedras, que publicou no ano passado para
socializar seus truques de escritor. “Está vendendo direitinho”,
confirma Pedro Herz, dono da Livraria Cultura, de São Paulo.
Morando hoje numa casa alugada de quatro quartos no bairro de Alto da Ponte,
na periferia de São José dos Campos, onde além da família
tem a companhia do pastor alemão Black Ghost e da dachshund Cookie,
Ryoki Inoue pode não estar rico — sua respeitável barriga
ainda não é a da prosperidade —, mas visivelmente já não
vive o sufoco de dez anos atrás, quando pôs para funcionar seu
taxímetro literário. Trocou há pouco uma periclitante
Ford Belina por uma caminhonete Chevrolet D-20 e entre “umas poucas frescuras” permite-se
o prazer de queimar, em seus cinqüenta cachimbos, uma mistura personalizada
de fumos que a Dunhill, da Inglaterra, lhe prepara de seis em seis meses com
base num detalhado questionário.
Cavalheirismo à parte, a escalada de Ryoki deve muito à colaboração
da mulher, com quem desde o início vem operando num esquema provavelmente
inédito em maluquice e exemplar em eficácia. Só não
se pode dizer que trabalhavam lado a lado, em sua casa de Piúma, porque
havia um tabique separando a mesa de Ryoki e a prancheta de Nicole. “Onde é que
você está?”, indagava ela de cá. “Estou chegando
com a diligência numa cidadezinha”, rebatia ele de lá. “Com índio
ou sem índio?”, tornava ela — e nessa “malhação
cerebral”, como diz Nicole, texto e capa chegavam juntos ao The End.
Ou nem sempre, pois aconteceu mais de uma vez de o desenho ficar pronto primeiro — como
aconteceu também de histórias nascerem a partir de capas concebidas
por Nicole para livro algum.
O sarampo literário
do jovem André
Também ela é escritora, interessada em temas como ecologia e
esoterismo, e cabe a Ryoki ajeitar o português afrancesado de sua prosa.
Já fez dez livros, dois deles editados, Os Pensamentos dos Anjos e A
Magia Branca a Serviço do Prazer Sexual — para não falar
em sua contribuição genética para as Letras: um dos filhos
do casal, o historiador André, 23 anos, teve um breve mas intenso sarampo
literário aos 16, idade em que publicou dez livros de faroeste. Georges,
o caçula, de 16, está terminando o seu primeiro, sobre as atribulações
de um adolescente na cidade grande. A filha Anouk, 20 anos, não escreve
mas transita em área próxima, como agente e assessora de imprensa
do pai. Só o filho mais velho, Cedric, de 26, passa ao largo da literatura — trabalha
com turismo.
O entrosamento do casal Inoue tem sido frutífero também no terreno
da pesquisa que precede a elaboração de cada história
de Ryoki. Nicole é fera na leitura dinâmica e dá conta,
fácil, de sessenta livros por mês. A lua-de-mel lítero-existencial
em que vivem a dez anos só se cobre de nuvens quando o marido, que dorme
apenas 3, 4 horas por noite (“vício de médico de UTI”,
suspira a esposa), vem acorda-la com todas as luzes do quarto, um copo de uísque
e uma idéia ótima para mais um livro. Idéia que, tão
logo tome corpo, ele cuidará de registrar em cartório, para prevenir
pirataria. “Fico louca, digo que ele é um bourreau” — carrasco,
em francês. Chega a ser prodigioso que se entendam, sendo, como são,
um pouco como o funcionário e a dançarina do samba de Chico Buarque:
Nicole prefere pintar com a luz do dia, Ryoki escreve à luz de lâmpada.
Em geral usa as manhãs para fazer pesquisas e as tardes para revisar
o que produz de madrugada. Em qualquer desses turnos, entre uma cachimbada
e outra, consome sucessivas garrafas de café.
As raras brigas do casal acontecem
na cozinha, onde reina a mais desenfreada competição
culinária. As especialidades, para começar,
são irreconciliavelmente opostas: Ryoki,
a despeito da ascendência oriental, com
sua avassaladora comida baiana, Nicole com sua
sutilíssima geléia de rosas. Em
sua disputa pelo galardão gastronômico,
chegam a comprar tudo em dobro, dois frangos,
dois coelhos, dois peixes, que preparam simultaneamente,
um em cada ponta da bancada.
Outra causa de moderados desentendimentos domésticos costuma ser a recusa
de Ryoki em fazer qualquer coisa que ponha em risco seus instrumentos de trabalho — os
dedos e as mãos. Não há quem o faça bater um prego,
por exemplo. Já cortou um dedo abrindo ostra e não esquece como
claudicou no teclado durante dois penosos dias. Basta-lhe a tenossinovite,
mal que acomete até digitadores que não escrevem romances em
6 horas, e que no seu caso se manifesta numa literal dor de cotovelo — mas
só na fase de revisão de um livro, explica, quando usa mais o
mouse que o teclado do computador. Também o punho às vezes dói,
e para isso Ryoki tem lá sua manha: é só inclinar um pouco
o teclado, ensina, puxando o lado direito para cima.
A primeira máquina
só agüentou um livro
Até quatro anos atrás ele penou em máquina de escrever,
algumas das quais abriam o bico depois de cinco, seis livros. A primeira, idosa
e frágil, não resistiu aos colts de McLee. Hoje Ryoki tem quatro
computadores, incluindo um laptor que carrega para o banheiro quando baixa
outra urgência além da literária. A informática
veio revolucionar a sua produção, permitindo-lhe escrever fora
de ordem e depois costurar os capítulos. Aderiu não faz muito à Internet
e está maravilhado com a economia de tempo no trabalho de pesquisa,
reduzido agora à décima parte, e com a fartura de material que
vem nessa rede. Antes de começar seu 1 040º livro, o romance Magia
Cigana, em fevereiro passado, ele não tinha mais que três ou quatro
laudas sobre ciganos, arduamente garimpadas em alfarrábios, e em meio
minuto de Internet outras quarenta e tantas desabaram em seu computador.
A pesquisa toma em geral cinco vezes mais tempo que a redação,
e na hora crucial de transformar aquilo em ficção Ryoki nunca
se deixa tomar pelo pânico do papel em branco, ou da tela vazia, capaz
de paralisar os escritores mais experientes. Como à beira de uma piscina
gelada, não fica adiando o mergulho — salta logo, escrevendo seja
lá o que for até achar o filão e ganhar desenvoltura. “Você pode
até derrapar, mas o importante é arrancar”, recomenda.
Andar, andar, ele explica, nem que seja de lado, feito um siri.
E a velocidade em que anda é realmente impressionante. Uma semana depois
de Pablo Escobar ter fugido da prisão na Colômbia, em julho de
1992, Ryoki Inoue apostou com seu editor que seria capaz de escrever um livro
sobre o chefão do Cartel de Medellín antes que ele se entregasse
ou fosse morto. A polícia levou ano e meio para liquidar o fugitivo — mas
Ryoki garantiu sua caixa de uísque em duas semanas. O livro é que
lhe deu certa ressaca — diz que não gostou do resultado, “a
pressão acabou atrapalhando”. O seu preferido é O Nome
Não Importa, de 1993, que apresenta como “as aventuras de um escritor
muito cético que vive experiências kardecistas”. Nenhum
que tomou mais tempo que A Bruxa — dois meses. Em compensação,
O Caminho das Pedras, até por força do nome, exigiu apenas três
dias.
Um quarteirão e
meio de literatura
No ano passado, pela primeira vez, Ryoki topou com um editor que lhe pediu
um pé no freio. “Escrever em quantidade não quer dizer
nada, estamos atrás é de qualidade”, diz Maxim Behar, da
Emus, de São Paulo. Convencido de que o escritor tem “uma facilidade
invulgar para assimilar qualquer estilo ou assunto”, Behar lhe encomendou
um romance, Do Mago ao Louco, “uma viagem pelo tarô”, que,
lançado em agosto do ano passado, está vendendo bem e, segundo
o editor, “é apenas o início de uma longa série”.
O próprio Ryoki Inoue não vê a rapidez no topo da lista
de suas qualidades como escritor. Dá mais valor à capacidade
de trabalho, grande o bastante para suprir deficiências como a datilografia
capenga. Sente-se dono de um português “razoável”, é muito
metódico e armazena informações numa memória extraordinariamente
espaçosa. Ela só não lhe permite declamar os títulos
das centenas de livros que escreveu, muitos deles escolhidos à sua revelia.
Aliás, não tem em casa tudo o que produziu, apenas uns 600 que
as editoras lhe mandaram. Há uma quantidade de volumes que ele nunca
viu — para não falar nos 400 que foram vendidos para o mercado
de língua espanhola e que acabaram por voltar ao Brasil, falando castelhano,
com títulos e pseudônimos trocados. Ainda assim Ryoki Inoue pode
informar que, disposta lado a lado, capa com capa, sua obra se estende por
160 metros — “quarteirão e meio”, converte esse apaixonado
dos números. Com a mesma segurança, garante que nunca lhe aconteceu
escrever uma história que já tivesse posto antes no papel.
O editor não queria dar aumento?
Ryoki Inoue se vingava, tranformando-o em personagem de alguma história
Nunca tira férias e não
sente falta: “o meu trabalho”, explica, “é uma
viagem permanente”. Gaba-se de sua capacidade
fazer o que chama de “transposições
mentais”: “Se vejo num filme uma
rua de São Francisco, na hora de escrever
eu vou saber sem erro se ela é mão
ou contramão”.Versátil, navega
nos mais diversos gêneros, com exceção
da poesia. A mulher garante que ele “é ótimo
em faroeste — você vê os tiros” —, “forte
em misticismo” e “muito preparado
para a ficção científica”.
A fonte principal de inspiração,
revela o escritor, é o dia-a-dia — miudezas
como um jantar no Rotary Club ou uma conversa
ouvida em restaurante. Quem cruza o seu caminho
corre o risco de virar personagem, que o diga
aquele repórter do Wall Street Journal. “Houve
um tempo que era muito gostoso”, conta
Ryoki. “O editor não queria me dar
aumento, eu brigava com ele e o enfiava numa
história, com nome americanizado, o sujeito
se reconhecia, era divertido.” Sua própria
vida, nem se fala, daria um romance. “Já deu
pelo menos três”, informa Ryoki,
enumerando: Estetoscópio, que aproveita
suas vivências de médico; Fraude
Verde, a sair este ano, sobre suas aventuras
e desventuras como gerente de uma empresa reflorestadora
no Mato Grosso; e O Nome Não Importa,
aquele do escritor cético que vive experiências
Kardecistas.
Pegando uma carona no misticismo
Para não correr o risco de se confundir, procura dar o mesmo nome a
certos personagens secundários de seus livros. Os barman são
sempre Larry, por exemplo, e os médicos, Ferguson. Xerifes de estrelas
menos brilhantes chamam-se Masters, as donas de bordel, Dolores, e os padres,
Ignácio — homenagem a um sacerdote espanhol amigo seu. No começo
da década, quando escreveu quatro ou cinco romances para consumo da
comunidade brasileira no Japão, criou o detetive Mário Nogaki, “um
samurai moderno, espécie de James Bond nissei”.
Não lhe peçam que escreva sobre política, tema que nunca
o entusiasmou. Considera-se “mais centrista que qualquer outra coisa” e
há muito tempo não vota — diz que as eleições
têm coincidido com suas raras viagens. “Mas teria votado no Collor”,
admite, “e me arrependido.” Teria votado também no presidente
Fernando Henrique Cardoso, só não sabe ainda se com arrependimento
ou não. Não pretende escrever, também, sobre escândalos
políticos, pois acredita que nesse terreno a realidade suplanta, de
longe, a mais desvairada imaginação. Religião, tudo bem.
De formação católica, acredita no espiritualismo sem chegar
a ser espírita. “Existem coisas mágicas”, reconhece,
e já começa dar forma romanesca a algumas delas, “pegando
uma carona no misticismo”.
Natural portanto que aprecie Paulo Coelho, na sua opinião “insuperável”.
O que não o impede de catalogar o autor de O Alquimista entre as suas “leituras
de obrigação”, aquelas que faz para se informar sobre as
tendências no mercado internacional de best-sellers. Embora de outro
extrato literário, o brasileiro João Ubaldo Ribeiro também
entra nessa categoria. Um segundo grupo é o das “leituras de reciclagem”,
englobando os clássicos, que podem ser “chatos”, como Euclides
da Cunha, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Shakespeare e o James Joyce
de Ulysses, ou “não chatos”, caso de Monteiro Lobato e de
dois outros escritores que Ryoki Inoue considere igualmente “clássicos”,
Mário Palmério e José Cândido de Carvalho. Os oito
a dez livros que lê mensalmente incluem, por fim, uma categoria “lazer”,
sobretudo contos e crônicas de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos,
Rubem Braga, Henrique Pongetti e, também aqui, João Ubaldo Ribeiro.
Hoje não sabe dizer se gosta mais de João Ubaldo ou de Fernando
Sabino. No ano passado a admiração pelo cronista mineiro era
tão grande que, numa Bienal do Livro, no Rio, estendeu a mão
para ele, emocionado, na entrada do estande da Rede Record — para então
se dar conta de que era um Sabino de papelão, em tamanho natural, plantado
ali para atrair leitores.
Atração
Turística em Piúma
Depois de ter sido, na sua fase pocket, escritor
para um público que
ia “do pedreiro e do peão ao executivo envergonhado que esconde
o livro na pasta”, Ryoki Inoue supõe ter hoje “o mesmo leitor
de um João Ubaldo”. Na paisagem da literatura brasileira, sente-se
na companhia, talvez, de Rubem Fonseca, “pela afinidade temática”.
Os críticos não tomam conhecimento de seus livros? “eles
só lêem o prefácio”, dá de ombros Ryoki. Editor
de um dos cadernos literários mais importantes do país, Idéias,
do Jornal do Brasil, o jornalista Cláudio Figueiredo reconhece que ainda
não se ocupou de nada da copiosa prosa do escritor paulista — mas
não por prevenção contra a literatura de entretenimento. “Já resenhamos
autores dessa faixa, como Paulo Coelho e Sidney Sheldon” , argumenta
Figueiredo, “quando entraram na lista dos mais vendidos.”
Não é, ainda, o caso de Ryoki Inoue, por enquanto mais conhecido
como fenômeno do que propriamente por aquilo que escreve. Ele calcula
em “vários milhões” o contingente de seus leitores,
e não deve exagerar, mas suas noites de autógrafos ainda não
chegam a arrebanhar multidões. Já saboreia, porém, suas
fatias de notoriedade — nem sempre inteiramente prazerosas: decidiu mudar-se
de Piúma, no ano passado, porque nos últimos tempos a curiosidade
em conhecer o autor de mil e tantos livros despejava ônibus de turistas à sua
porta. Experimentou uma alegria de principiante quando viu alguém com
o seu Onde Está Pablo Escobar? Nas mãos. E sentiu-se duplamente
nas nuvens no dia em que, a bordo de um avião, foi reconhecido e festejado.
Tempo virá em que saberão ver nele mais que um sprinter da literatura — Inoue
estava confiante, ao cabo de duas horas e meia da entrevista a PLAYBOY. Duas
horas e meia? “Daria para escrever oitenta páginas de livro.”
FONTE: Revista
Playboy, Maio de 1996 por Humberto
Werneck |