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Padre
João Barca
Creio que todos os bares e restaurantes que
beiram as rodovias são semelhantes.
Com exceção dos grandes postos
de reabastecimento que, pertencentes a poderosos
grupos financeiros, já adquiriram
um aspecto desenvolvimentista de primeiro
mundo, todos os outros são igualmente
infectos, mal-cheirosos e mal-frequentados.
Entrecruzam-se nesses lugares, numa intimidade
promíscua, caminhoneiros, mulheres
fáceis do mais baixo padrão,
bandidos de todos os calibres, malandros
os mais diversos, andantes e peregrinos famintos,
ciganos e, eventualmente, pessoas que não
pertencem a esse tipo de mundo.
Como eu, por exemplo. E aquele homem sentado duas mesas adiante da minha.
Eu o reconheci imediatamente e não conseguia perceber o que ele poderia
estar fazendo ali, perto de Imperatriz, tão longe de sua casa, de sua
paróquia, vestido como um "carga-pesada", usando calções
surrados, sandálias-de-dedo e camiseta sem mangas. A barba de vários
dias ajudava bem a mostrar que, há muito, ele estava precisando de um
bom banho de bucha, com fartura de água e sabão.
Em dado momento levantou os olhos do prato que devorava e fixou-os em mim.
Rápido, tornou a baixar a cabeça e, com mais fúria, meteu
uma valente garfada de arroz com feijão em sua boca.
Não conseguiu porém, disfarçar um certo mal-estar, uma certa
perturbação.
Reconhecera-me também e, ao perceber que eu já o tinha visto, sentiu-se
mal, como se fosse um peixe fora d'água.
Impossível continuar a fingir, mesmo por que eu já me levantava
e me dirigia para sua mesa.
Sorriu um sorriso amarelo ao me estender a mão, ao me ouvir dizer:
- Mas que surpresa, Padre João! Quem haveria de imaginar que nós
nos encontraríamos aqui...!
Havia mais de cinco anos que eu não o via e nem dele tinha notícias.
Soubera, por amigos comuns, que ele se desentendera como nunca com o seu bispo
e que se mudara, possivelmente transferido, para algum lugarejo no interior de
Goiás. Detalhes, não os sabiam aqueles meus conhecidos, e nem eu
me dei o trabalho de procurar saber. Apenas, lá no último arquivo
de minha memória, um lampejo de preocupação passara, perguntando,
muito egoisticamente:
- E agora? Quando formos caçar marrecas, como nos arranjaremos com o bote?
E com o alojamento?
Mas, fora apenas um lampejo, piscar fugaz da manifestação de um
egoísmo até que bastante humano mas que, nem por isso, me impede
de, às vezes, me envergonhar ao perceber que também faço
parte da imensa massa, que também sou um humano sujeito a vícios,
a atitudes que manifestam muito pequena caridade e menor ainda fraternidade.
Contudo, nesse caso, perdôo-me: já que, por circunstâncias
várias, seria muito difícil voltar àquela cidade para caçar
(por exemplo, a falta de tempo, a caça rigorosamente proibida, a turma
de amigos já dispersa), não havia motivos bastantes para que eu
me preocupasse com o Padre João, personagem que desde há cinco
anos, já pertencia ao meu passado.
Era uma figura interessante, esse pároco de interior.
Quando lá estivemos, pela primeira vez, teria pouco menos de trinta e
cinco anos de idade, estava no auge do entusiasmo, forte e atlético, sempre
bem disposto e alegre.
- Conheço um lugar excelente para marrecas. Amanhã, bem cedinho,
vamos lá com minha barca e garanto que vocês vão fazer uma ótima
caçada.
Tinha razão, o padre.
Ainda escuro, bem antes da Missa, saímos, o padre levando uma velha espingarda
calibre doze que, durante a caçada, mostrou ser muito boa e, melhor ainda,
quem a manejava.
Bem treinado, esse ministro de Deus!
Não perdeu um só tiro!
- Agora, como pagamento pelo aluguel da barca e como recompensa por eu lhes ter
ensinado um lugar de tão boa caçada, vocês irão à Missa.
E nós fomos...
A história se repetiu por todas as muitas vezes que lá estivemos
e, devo dizer, jamais nos arrependemos.
Nem de lá ir e, muito menos, dos nossos pecados, na hora do Confiteor,
que o padre nos fazia rezar ainda em Latim, alegando que era raro ter alguém
suficientemente instruído por lá, para ao menos ler a oração
no Missal, sem assassiná-la e sem fazer Cícero dar voltas onde
quer que seu cadáver se encontre hoje.
Chegávamos à cidade durante a tarde de sábado e íamos
diretamente para a Casa Paroquial onde Dona Elizabete, uma senhora já de
seus cinquenta anos, preparava-nos um quarto e um ótimo jantar, bem à mineira,
do jeitinho que a gente gosta até hoje: arroz tão soltinho que
não se podia falar alto perto dele, feijão macio e bem temperado,
carne de porco frita e, vez por outra, uma galinha ao molho pardo ou uma carne
assada de fazer babar. De sobremesa, nunca faltava um doce caseiro, fosse de
abóbora, de mamão, de cidra, de goiaba ou de banana, sempre bem
acompanhado por um queijo meia-cura de se tirar o chapéu e de fazer qualquer
um sair do sério.
O padre vinha jantar conosco, fumar um cigarro e beber uma cachacinha - diga-se
muito de passagem que Padre João Barca era um excelente copo - que, vinda
de Itamogy especialmente para ele, descia pela garganta, redonda e suave, parecendo
até estar sendo acompanhada pelos cânticos celestiais dos anjos
da igrejinha barroca onde ele, Padre João, rezava suas missas.
Brincávamos com ele:
- Você troca o vinho de missa por essa pinga, é ou não é,
padre safado?
- A pinga, quando boa - dizia ele - é também uma dádiva
de Deus e, por isso, deve ser reverenciada como tal!
E, entornando mais um copo goela abaixo, completava:
- É pena que o Demônio tenha tomado para si o controle de seus efeitos...
No dia seguinte, madrugada ainda, o padre nos chamava, íamos à caça.
Depois, enquanto Dona Elizabete limpava os marrecos e os salgava para que pudessem
enfrentar a viagem de volta, nós íamos à Missa, rezar com
expressão compungida o Confiteor, e rir quando o padre, a missa terminada,
nos dizia, à porta da sacristia:
- Não agüento ver a cara que fazem, na hora da oração!
Quem os vê imaginam que, de fato, estão arrependidos de seus pecados!
Rindo, completava:
- Mas eu sei que não se arrependem... E sei que vão continuar a
pecar como sempre!
Pudera...
No meu caso, por exemplo, não era possível me arrepender de um
certo pecado que vinha cometendo regularmente, havia já quase dois anos...
Mas, isto é uma outra história.
Na última vez que lá estivemos, a boa Elizabete estava doente e,
para substituí-la e nos ajudar, enviou sua sobrinha, a Lurdes.
Moça desempenada e alegre, de cabelos compridos e louros como o ouro,
ela se saiu muito bem ao preparar o jantar e limpar a caça.
Elogiada, agradeceu e disse:
- Ora... O trabalho de casa me agrada muito mais do que as aulas de Português
que sou obrigada a dar aqui no ginásio.
Depois dessa vez, não mais voltamos, não mais encontrei o padre
João Barca.
E, para meu espanto e surpresa, vinha revê-lo ali, naquele restaurante
infecto, perto de Imperatriz.
- Está de férias? - perguntei enquanto ele punha na boca um naco
de bife que mais parecia um pedaço de sola de sapato velho.
- Não, não... Estou trabalhando - respondeu ele, em tom evasivo.
Trabalhando? Como assim? Teria sido possível que eu me tivesse enganado
e que estivesse falando a um desconhecido?
A expressão de surpresa, espanto e dúvida que se estampou em meu
rosto fez com que ele se abrisse num sorriso e dissesse:
- Sou eu mesmo, doutor... Você não se enganou, não.
E, com os olhos baixos, a fala triste, acrescentou:
- Mas acho que mudei tanto, mas tanto, que nem mesmo Deus seria capaz de me reconhecer!
Desviei os olhos para disfarçar o mal-estar que sentia e vi que um gorila
sentado à mesa ao lado bebia uma pinga com tanta satisfação
que me deu vontade de tomar uma, também.
- Vamos uma branquinha? - convidei.
Viramos nossos copos com a careta convencional e o padre comentou:
- Que diferença daquela cachacinha envelhecida de Itamogy, não é mesmo?
- Pois é... - respondi, distante.
Mesmo assim, pedimos mais duas e ficamos alguns momentos olhando um para o outro,
naquela situação desagradável de quem quer perguntar mas
não tem coragem e de quem quer contar mas não tem ânimo,
tem é muita vergonha.
Finalmente, o padre quebrou o silêncio:
- Você se lembra da Lurdes, a sobrinha de Dona Elizabete?
Evidentemente que eu me lembrava e, no momento em que ele dissera aquela frase,
já pude adivinhar todo o resto.
Aceitando um cigarro que eu lhe ofereci, o padre contou sua história.
Dona Elizabete não tinha mais disposição e nem saúde
para trabalhar e, assim, Lurdes foi ficando. Durante as duas primeiras semanas,
nada ocorreu de anormal mas, com o passar dos dias, o padre começou a
reparar que não tinha mais as meias furadas, que os botões de suas
camisas não estavam mais faltando e que uma incontável quantidade
de pequenas coisas que o aborreciam no serviço doméstico, não
mais aconteciam.
Enfim, notou que sua vida tinha melhorado, e muito.
Também a Casa Paroquial tinha ficado diferente. Até então,
mais parecida com uma pensão ordinária, ela começava a adquirir
jeito de lar.
Não raro, quando precisava assistir algum moribundo altas horas da noite,
surpreendia-se ao encontrar Lurdes a esperá-lo, com farta quantidade de
bolinhos e café fresco.
Éclaro que ele lhe dissera, várias vezes aliás, que não
se preocupasse, que não era necessário, que afinal de contas ele
estava habituado a voltar tarde para casa e ir dormir sem comer nada.
- Ora, padre... Não me custa nada. Além disso, acho que o senhor
merece. Vive aqui tão sozinho...
Padre João não percebeu, no início.
Foi preciso que um dia, uma tarde de sábado, um político da cidade,
seu amigo, lhe dissesse:
- O que é que há, padre? O senhor não aparece mais em lugar
nenhum, não vai mais à casa dos amigos... Outro dia, até deu
uma desculpa esfarrapada para não ir jantar em casa do prefeito!
E, sarcástico, acrescentou:
- Até parece homem casadinho de novo...
Padre João percebeu a indireta.
Porém, não ligou.
Tinha a consciência perfeitamente tranquila e, de mais a mais, tinha descoberto
como era gostosa a vida em sua casa.
Comentou com Lurdes:
- Você transformou esta casa, menina!
Ela sorriu, fez um trejeito dengoso e respondeu:
- Até mesmo a casa de um homem sozinho precisa das mãos de uma
mulher...
Duas semanas depois, Lurdes precisou ir para a Capital, tinha de resolver alguns
problemas com a sua licenciatura de professora.
Padre João Barca acompanhou-a até a estação rodoviária,
carregou sua mala e...
Voltou para casa sozinho.
Àforça de começar a encarar esse fato, o de que sempre
vivera sozinho, Padre João Barca se compenetrou que a vida de um pároco
de interior é absolutamente solitária.
De repente, ele sentiu a solidão.
Era um vazio intruso, um frio no estômago como se lá, em vez de
vísceras, houvesse um vácuo, uma estranha e desesperadora sensação
de estar, constantemente, precisando de alguma coisa...
Ou de alguém.
Sentiu-se deprimido, não mais encontrava a paz em suas orações,
muito pelo contrário: começava a se revoltar contra a opção
que fizera há dez ou doze anos, ainda no seminário.
- Maldito celibato clerical!
Toda essa sensação de vazio, essa angústia e ansiedade,
desapareceram quando, uma semana depois, ao chegar da visita que fazia semanalmente
ao asilo de velhos, encontrou Lurdes na Casa Paroquial com um bonito bolo de
fubá, à sua espera.
A partir daí, a mudança que começava a se operar em seu
comportamento, se acentuou.
Arranjava toda e qualquer desculpa para não sair de casa pois sabia que
lá teria a companhia de Lurdes, sempre tão agradável e dedicada.
Começou a se sentir mal quando ela ia dar suas aulas e ficava pior ainda
quando, à noite, ela lhe dizia:
- Até amanhã Padre João! - e saía porta afora, balançando
ao vento os seus cabelos louros.
Não foi preciso muito tempo mais para que ele descobrisse que estava apaixonado.
Perdidamente apaixonado.
Decidiu se mortificar, jejuar, sair para um retiro terrível na Capital.
Tudo inútil.
As mortificações (comer só nas horas certas), iam por água
abaixo com os bolinhos que Lurdes lhe preparava às três horas da
tarde e por volta de dez horas da noite, quando ela voltava do ginásio.
O jejum, não conseguiu fazê-lo pois Lurdes passara a manhã inteira
preparando um pernil que...!
Já o retiro na Capital, foi um desastre completo.
Não conseguiu nem mesmo chegar a São Bento do Sapucaí.
Voltou pela primeira condução, pretextando uma indisposição
qualquer.
Ah, que mentira gostosa!
A moça o pôs de cama, fez-lhe chás, dispensou as visitas
importunas, cobriu-o de atenções.
O padre, coitado, em vez de melhorar de um mal que não existia, piorou
de outro, de um câncer da alma que já o vinha corroendo aos poucos.
Tentou rezar mas sentiu tanta hipocrisia no que murmurava que, horrorizado, desistiu.
Uma tarde, um desses fins de tarde de novembro em que a luz do sol parece mais
bonita fazendo as cores ficarem mais vivas, Padre João estava sentado
na varanda da Casa Paroquial.
Àsua frente, estendia-se o vale, enorme extensão de terras férteis,
cheia de fazendas prósperas. Conhecia muito bem cada um desses proprietários,
seus filhos, suas esposas, seus pecados.
Sabia que, apesar de todas as intempéries e oscilações, às
vezes até mesmo violentas, a que está sujeita a vida dos agricultores,
todos eles eram felizes.
Sim...
De um modo ou de outro, eram felizes e, principalmente, felizes em suas casas.
Todos eles tinham um denominador comum, todos eles se assemelhavam em sua felicidade
doméstica: possuiam um lar, filhos, crianças brincando no terreiro,
esposas cozinhando em seus fogões.
Esposas...
Balançou a cabeça tentando afastar da mente a idéia que
começava a se formar e tornou a olhar para o vale.
Ali, por exemplo, a casa mais próxima, a fazenda do Demétrio.
De sua varanda, o padre via perfeitamente a fumacinha azulada subindo da chaminé,
na tarde sem vento. Imaginava o fazendeiro que, àquela hora, já teria
chegado do trabalho, tomado seu banho e, de chinelos nos pés, estaria
na cozinha brincando com o filho caçula e comentando com a mulher os afazeres
do dia.
Que bela cena!
E lá, então...
Mais ao longe, a casa do Quinzão...
Já mais idoso, o casal estaria sentado na sala, ela tricotando alguma
coisa para os netos e ele, conversando com os filhos e genros sobre o serviço
da fazenda...
Assim, todos os outros, sem nenhuma exceção.
Era o fim do dia, a hora em que o homem sente que tem um lar, que tem uma família
e que não está sozinho.
Sozinho!
Palavra dura!
Condição terrível!
O sol já se avermelhava, fazendo com que todas as coisas adquirissem um
tom escarlate.
Padre João, pensativo, macambúzio, nem percebia direito que a noite
chegava.
Porque só ele não podia ter, também, um lar normal? Porque
só a ele não era dado o direito de ser feliz? Dentro do ensimesmamento
que ultimamente vinha tomando conta de sua alma, não havia mais lugar
para o sacerdócio. Vocação, se um dia tivera realmente,
já não mais existia. Convencera-se de que havia cometido um erro
incomensurável ao escolher essa carreira de sacrifícios e privações.
Afinal de contas, ele era homem, ora bolas!
E um homem normal, como qualquer outro! Também tinha o direito de ser
feliz!
No entanto, ali estava ele, só, isolado, ilhado naquela cidade, impossibilitado
de mudar o ritmo dos acontecimentos.
Lurdes veio lhe trazer o café e, ao apanhá-lo, suas mãos
se tocaram.
Foi um toque breve, em qualquer outra circunstância teria sido absolutamente
inconseqüente, teria até passado desapercebido.
Mas, naquele momento, os olhos dos dois se cruzaram e se disseram mutuamente
alguma coisa, transmitiram-se uma mensagem cúmplice que, mesmo em silêncio,
ambos puderam ouvir.
Lurdes foi embora mais cedo essa noite e deixou o padre de olhos acesos até o
amanhecer, pensando, cismando, olhando para o teto de seu quarto sem ver e sem
perceber coisa nenhuma.
No dia seguinte, a moça lhe pareceu diferente. Mostrava-se arredia, arisca,
encabulada...
Também ele, não estava normal. Chegou até a confundir as
páginas do missal e rezou a missa de uma semana atrás. Por sorte,
a dúzia e meia de beatas que estavam na igreja - aliás como todos
os dias - iam ali maquinalmente e nem mesmo chegaram a perceber o ocorrido. Na
verdade, ele próprio só descobrira o erro quando terminada a cerimônia,
vira que estivera o tempo todo em lugar errado, no missal. Em tempos outros,
ele teria ficado perturbado com o fato mas, naquele momento...
Não via mais qualquer importância em tudo aquilo.
Àtardinha, a cena do café se repetiu. Só que, desta vez,
o toque entre seus dedos e os de Lurdes foi provocado, se tornou um pouco mais
demorado e os olhos de ambos se confessaram haver qualquer coisa além
do relacionamento simples e puro que deve haver entre um padre e uma mulher.
Os olhos de Padre João tinham o brilho dos olhos de um macho em busca
e os dela, a candura e a meiguice da fêmea que aceita...
Com isso, mais uma noite em claro.
Porém, nessa noite, Padre João sentiu-se mais objetivo. Pensou
muito e, ao clarear o dia, tomou uma decisão: deixaria a batina, uma vez
que perdera a vocação. Não soubera sublimar um sentimento,
não deveria mais ser um sacerdote.
- Não morrerei de fome. Posso muito bem dar aulas.
Nesse dia, nem missa rezou. Nem mesmo esperou Lurdes chegar.
O calor do sol veio encontrá-lo já muito longe de sua paróquia.
Homem de princípios, não queria abandonar tudo sem se explicar
com seu bispo, sem ao menos tentar se justificar. No fundo, talvez levasse uma
esperança de que o prelado da diocese lhe perdoasse a fraqueza, lhe desejasse
uma melhor sorte.
Na Cúria, soube que o bispo estava em retiro e que só poderia recebê-lo
dentro de uma semana.
Resolveu aproveitar o tempo para procurar o que fazer no futuro, no campo do
magistério, lá mesmo numa cidade maior, mais progressista.
Para seu desespero, não estava nem um pouco fácil encontrar emprego.
As vagas para professor de Português estavam todas preenchidas e parecia
não haver a menor possibilidade. O mesmo se dava com História,
e Geografia.
Encontrou uma vaga para dar aulas de Religião mas, não aceitou.
Não se achava digno para a empreitada.
Telefonou para Lurdes, contou-lhe que ia abandonar a batina, não lhe deu
mais detalhes.
Ouviu-a dizer:
- Nesse caso, nada mais me prende aqui... Vou para Campos do Jordão, para
a casa de Tia Renata.
A reunião com o bispo foi um verdadeiro desastre. O velho e arcaico prelado,
incapaz de aceitar essa fraqueza de um sacerdote, desacatou-o, gritou com ele,
ameaçou-o com o fogo do inferno e todas essas coisas que se usam para
assustar as crianças mal-comportadas.
Padre João saiu da Cúria desnorteado, ciente de que havia se perdido
para Deus e para todos.
Tirou a batina, comprou uma roupa comum e...
* * * *
- Fiquei
completamente desorientado - confessou-me
o ex-padre
- Entrei num bar
e bebi até cair... Depois, quando
despertei, deitado no banco de um jardim,
comecei a pensar melhor. Não podia
deixar que a vida se escoasse daquela maneira,
não podia permitir que tudo se acabasse.
Eu tinha um carro, tinha algumas economias.
Se não era possível dar aulas,
poderia ao menos negociar com mercadorias.
Comprei um caminhão velho, depois
um mais novo e, por fim, tenho conseguido
sobreviver até que razoavelmente
bem...
Levantou-se, não me deixou pagar
sua despesa.
Acompanhei-o até o caminhão,
um belo Scania novo, todo enfeitado e equipado.
- Está bonito! - elogiei, subindo à cabina para vê-la
por dentro.
Televisão, rádio, toca-fitas, CD-player, ar-condicionado, até mesmo
um transceptor faixa-do-cidadão! Completa, a cabina do monstro!
E, bem no meio do painel, um adesivo magnético de Nossa Senhora Aparecida,
com uma fotografia de uma criança louríssima, os olhos bem claros
e uma face linda.
Embaixo da fotografia, os dizeres:
Papai, guie com cuidado. Em casa, Mamãe e eu esperamos por você.
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