Pastora
de Homens (retalhos
capítulo 10)
Padre João, homem João,
João, Joãozinho talvez...
O certo é que muitas e muitas
vezes, Zé Maria, o coroinha, fora
buscá-lo no bordel, pois alguém
resolvera, numa hora extremamente imprópria,
passar desta para melhor. E lá ia
João, padre João, administrar
extremas-unções de cara
amarrada, o pensamento ainda voltado
para os perfumados lençóis
de cetim de sua Josette.
Durante algum tempo, anos atrás,
Josette bem mais moça e João
ainda bem cheio de dúvidas quanto à sua
verdadeira vocação, comentou-se
nas mesas do bordel que ele propusera, à jovem,
uma união permanente.
—
Chegaram a planejar uma mudança
lá para os lados de Goiás...
O padre viraria professor e Josette seria
sua mulher...
Mas a idéia não vingou,
mesmo porque para que algo assim possa
acontecer, é fundamental que a
vontade seja bilateral. E, no caso, tudo
indicava que era idéia apenas
de João, padre João, homem
João. Josette nascera com o destino
da Lua, para todos que andam na rua,
não vai viver só pra mim...
Imagine-se quantas e quantas vezes João
cantara baixinho e chorando essa música...!
João chegara à cidade havia
quase trinta anos, vindo da Capital para
substituir o já velho e alquebrado
Padre Bento que, certamente cansado de
ouvir as mais incríveis baboseiras
em seu confessionário, pedira
ao Bispo que enviasse seu sucessor e
que este fosse jovem e bem disposto,
para poder dar conta do recado, nesta
cidade de pecadores.
E foi assim que João, padre recém-ordenado,
foi amarrar sua égua naquele lugar
perdido de Deus e dos homens, uma cidade
que, no fundo, não passava de
um pobre vilarejo de empregados da pequena
dúzia de coronéis, cujas
terras a circundavam.
Cidade pequena, com apenas uma igreja,
nem mesmo médico ou hospital tinha
naquela época. Os doentes, as
parturientes, os moribundos, tinham de
andar em charretes ou no lombo de jegues,
até a cidade mais próxima,
a mais de cinco léguas de distância.
Claro, para muitos não houve tempo
suficiente e, assim, o trajeto era pontilhado
de cruzes, marcando os locais aonde a
Morte viera buscar seus escolhidos.
Sim, a cidade era pequena, quase ínfima.
Mas, tinha o seu bordel, ponto de reunião
de todos, local onde tudo acontecia e
nada se divulgava, além daquilo
que era convencionalmente permitido.
No início, ainda muito imbuído
de suas funções de guardião
das Leis de Deus, o padre bem que tentou
se insurgir contra a existência
de tal estabelecimento.
Porém, muito cedo percebeu que
seria uma luta inglória, pois
uma vez decidido a voltar-se contra aquela
casa, estaria tendo de enfrentar — com
sensível e inequívoca desvantagem — praticamente
toda a população masculina
da cidade.
Imaginou, então, que conseguiria
alcançar seu objetivo — fechar
o bordel e expulsar aquelas mulheres
para longe, para algum lugar em que estivessem
mais perto do reino de Satanás — através
das esposas dos homens que, é claro,
o olhavam de esguelha, talvez até mesmo
planejando o seu sumiço.
Ledo engano... As esposas já estavam
conformadas. Muitas, senão a grande
maioria, preferiam ter os maridos lá no
bordel, pois ao menos sabiam onde eles
estavam, do que perambulando pelos incontáveis
botecos da cidade, com o risco de se
verem envolvidos em alguma briga.
—
Ele já não faz mais nada
em casa mesmo — disse-lhe uma dessas
esposas — Se vai ao bordel, certamente
não é para fazer o que
já não consegue, não é verdade?
Assim, que mal há nisso?
E Padre João foi obrigado a admitir
que fora derrotado, com tudo quanto ele
pensava representar.
O bordel vencera e lá ficara ele,
incólume, com suas mulheres, seu
frango frito a passarinho, ensopado com
polenta, ou a galinha ao molho pardo,
suas bebidas e os homens que lá iam
todas as noites, fosse para simplesmente
comer, beber e deixar passar o tempo,
fosse — quem sabe — para
outras coisas muito menos recomendáveis.
Foi numa manhã de quinta-feira
que padre João conheceu Josette.
Ele tinha terminado a sessão de
confissões e estava se perguntando
como o seu antecessor, padre Bento, conseguira
agüentar por tanto tempo aquele
calvário. As beatas — praticamente
as únicas freqüentadoras
do confessionário — viam
pecado em absolutamente tudo, desde no
simples ato de urinar até num
sonho, em que elas se viam como donzelas
cobiçadas.
—
O que elas fazem com os pensamentos,
isso elas não dizem — murmurou
padre João, tirando a sobrepeliz
na sacristia — Isso, pelo menos,
teria uma conotação científica...
Estava ainda pensando nos íncubos
que vinham atormentar o sono da velha
Siá Beatriz, e no sonho indecente
que Nhá Constância lhe contara,
quando Josette chegou.
—
Posso falar um instante com o senhor? — perguntou
ela, da porta.
Padre João já a conhecia
de vista, vira-a quando viera à cidade
para comprar lençóis na
loja do Salim Mathias e ouvira de seu
sacristão, Maurício, que
ela fazia parte das meninas do bordel.
Assim, ao vê-la ali, à porta
da sacristia, seu primeiro impulso foi
o de expulsá-la da Casa de Deus,
gritando a plenos pulmões que
era uma mulher indigna de ali se encontrar.
Porém, antes que ele pudesse ter
qualquer reação, Josette
disse:
—
Padre, posso ser uma puta, mas também
sou filha de Deus...
Era verdade. Bastava lembrar do Evangelho,
quando Cristo amparara Madalena... Quem
era ele, pobre mortal, padre recém-saído
do seminário, para julgar e condenar
uma mulher? E ainda mais aquela, cuja
beleza parecia ter saído de um
quadro de Rafael?
—
O que deseja? — perguntou o padre,
num fio de voz.
—
Posso entrar? — indagou Josette,
já atravessando a porta da sacristia.
—
Sim, claro — balbuciou ele — Entre.
Sente-se, por favor...
Indicou-lhe uma cadeira e Josette sentou-se,
mostrando nesse simples gesto que possuía
um incomensurável poder de sedução.
O padre não conseguiu se furtar
de prestar mais atenção
a ela. Era linda, não poderia
negar. Sedutora, via. Perigosa, sentia.
(...)
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