Pastora
de Homens (retalhos
capítulo 13)
Doutor Fábio olhou para o lado,
viu a esposa que enxugava uma lágrima
e, apertando um pouco mais sua mão,
cochichou-lhe:
—
Vamos, querida... As crianças
não podem ficar sozinhas tanto
tempo.
Estavam saindo quando Beto Capivara entrou,
alquebrado, as costas curvadas, o andar
trôpego de quem já tinha
passado dos noventa anos.
—
Como vai, seu Beto? — cumprimentou
o médico — Como vai a tosse?
—
Daquele jeito que Deus permite, meu filho — respondeu
o velho — De qualquer maneira,
melhor do que ela...
E apontou para o caixão de Josette,
acrescentando:
—
Ela ainda era muito moça... Era
quase cinqüenta anos mais jovem
que eu...
Amparado pelo filho, aproximou-se do
caixão, olhou para a defunta e
murmurou:
—
Josette... Uma grande mulher... Ela foi
uma grande mulher... Sempre disposta
a ajudar, sempre cedendo seu ombro amigo
a quem precisasse de amparo, de uma manifestação
de amizade!
Olhou ao seu redor e disse, em voz alta:
—
Se todas as daqui fossem a metade do
que foi Josette, nossa cidade seria o
paraíso sobre a Terra! De nada
adianta ser perfumada e ir à Missa
todos os dias, se o coração,
lá dentro do peito, não
sabe o que é o verdadeiro amor!
E poucas souberam tanto de amor, quanto
Josette!
Beto Capivara tinha a permissão
da idade, dizia o que queria, quando
queria e onde bem entendesse, ofendesse
ou elogiasse quem quer que fosse. Não
havia quem tivesse coragem de contradizê-lo,
pois sabia estar correndo o sério
risco de ter mais de metade da população
contra si, tão querido, admirado
e respeitado era o velho.
Pousou as mãos magras sobre a
borda do caixão e deixou que duas
grossas lágrimas escorressem de
seus olhos.
—
Você me deixa muita saudade, Josette...
Ainda me lembro, minha querida... Ainda
me lembro...
— . —
Beto Capivara,
então ainda
chamado apenas de Betão, estava
em seus sessenta anos, mas vigoroso,
ainda dava muito trabalho à sua
mulher, dona Leontina.
Trabalho, aliás, que ela realizava
com muito prazer, pois era suficientemente
quente para isso e amava de paixão
o marido. Para ela, não poderia
jamais existir outro homem na face
da Terra e...
Claro que ela esperava que a recíproca
fosse verdadeira: esperava que Betão
também achasse que não
poderia haver nenhuma outra mulher
no mundo.
Que o amor é cego, todos sabem.
O que só se descobre muito tarde, é que
além de cegar as pessoas, ele,
o amor, as torna surdas e... burras.
Leontina, casada com Betão havia
mais de trinta anos, achava que o marido
gostava mesmo, antes de dormir, de
tomar uma cerveja com os amigos e jogar
um pouquinho de cacheta.
Não desconfiou, jamais, que
tudo isso realmente acontecia, só que
no bordel, onde além de amigos,
cerveja e baralho, havia mulheres...
E mulheres mais jovens, mais bonitas
e muito mais ousadas do que ela.
Foi através de uma conversa
com uma amiga — falsa amiga,
dependendo do ponto de vista — que
Leontina começou seriamente
a desconfiar do marido.
Ciumenta, passou a investigar suas
saídas à noite e, claro,
não demorou muito para descobrir
que Betão era dos melhores clientes
do bordel e — incrível,
em sua idade! — não passava
uma noite sem ir para o quarto de uma
das meninas.
Mas, como é sabido, a cegueira
e surdez do amor, fez com que Leontina
acreditasse mais uma vez no marido
quando este, pressionado por ela, garantiu
que jamais ia ao bordel e que ficava,
mesmo, era no bar do Armando, jogando,
conversando e bebendo com os amigos.
—
Você fica acreditando nessas
suas amigas beatas — disse ele — E é nisso
que dá! Você acha que
eu vou fazer o quê, num bordel?
Na minha idade?
Leontina poderia ter lembrado do que
o marido fizera com ela na manhã daquele
mesmo dia para perceber que, se ele
era capaz de fazer com ela, já gasta,
envelhecida e feia, o que não
faria com uma daquelas meninas, bonitas
e perfumadas...
Mas, Leontina engoliu a história.
Pelo menos, por uma semana, até encontrar
a amiga beata na saída da Missa,
que lhe disse:
—
Ouvi falar que o Betão ontem à noite
precisou de duas meninas...
A velha crispou os lábios, semicerrou
as pálpebras e pensou:
—
Engraçado... Ele me deixou em
paz esta manhã... E roncou a
noite inteira, como se estivesse mesmo
muito cansado!
Voltou para casa sem dizer nada, praticamente
não trocou uma só palavra
com o marido e, quando ele saiu à noite,
dizendo que ia para o bar do Armando,
ela apenas grunhiu alguma coisa em
consentimento.
Esperou mais de hora e meia, o tempo
que achava suficiente para que ele
jogasse algumas partidas de cacheta,
tomasse suas cervejas e voltasse para
casa.
Como tal não aconteceu, ela
resolveu, pela primeira vez na vida,
ir atrás do marido.
Claro, ele não estava no bar
do Armando e Leontina, agora cega de
raiva, voltou para casa.
Aos prantos, abriu a gaveta da escrivaninha
de Betão e apanhou o revólver.
Segurando-o na mão, à vista
de quem quisesse ver, ela rumou para
a zona.
Por uma dessas coincidências
que só acontecem por obra do
Demônio, não cruzou com
absolutamente ninguém até chegar à porta
do bordel. Foi no instante em que já estava
entrando, que o farmacêutico
a viu e percebeu que a situação
poderia, realmente, engrossar. (...)
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